Jesus Cristo era comunista?
Tendo nascido no longínquo ano de 1969, comecei a ter as minhas primeiras aulas de catequese católica numa altura em que, na televisão, passava a Gaivota e o menino que não havia de combater, num período em que se defendia publicamente que a terra era de quem a trabalhava, a batata de quem a semeava, no momento em que uma Assembleia Constituinte escrevia que portugal era um país a caminho do socialismo. A guerra era vista como a origem dos males e gritava-se que nem mais um soldado para África.Fosse porque as vozes de direita estavam amordaçadas, fosse porque as pessoas acreditavam genuinamente num ideal socialista, nesse tempo era bem visto ser-se de esquerda, defender-se a igualdade, combater as injustiças sociais. Poucas pessoas tinham a coragem para defender abertamente, num microfone aberto da rádio ou da TV, que a redistribuição não era uma coisa boa, que as pessoas não deveriam ganhar tendencialmente o mesmo, que não era preciso combater a pobreza e a desigualdade.
Enquanto isso, na catequese, eu aprendia que Jesus nunca foi um homem de posses. Os seus amigos eram pescadores, pessoas rudes de entre o povo. Jesus defendia o fim das guerras, com a filosofia mais revolucionária de todos os tempos: "dá a outra face; oferece a túnica a quem te tira o manto". Elogiava a viúva que redistribuía o pouco que tinha e criticava severamente os ricos que ostentavam a sua riqueza na caridade que faziam. Dizia mesmo que estes últimos teriam de dar prioridade ao camelo, na passagem pelo buraco da agulha que é a entrada no reino dos céus.
Na minha simplicidade de criança de cinco-seis anos, juntei dois e dois e concluí, muito naturalmente, que Jesus Cristo era comunista. Os comunistas defendiam os pobres, o fim da guerra, a distribuição equitativa, tudo valores que me eram inculcados pelas minhas catequistas.
Paralelamente, convenci-me de que a direita era uma ideologia ateísta, pois defendia o lucro, a usura, a acumulação de riquezas (Está bem, está bem - admito que, aqui, me estou a armar aos cucos. Não fazia ideia do que eram essas coisas com 6 anos, mas tinha a sensação nítida de que essa malta de direita gostava mesmo era do carcalhol).
Durante a escola primária, tive por grande amigo uma pessoa com uma preparação teológica acima do comum de uma criança de 8 anos. A esse facto, não seria alheio o pormenor de ser sobrinho e afilhado do Arcebispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueira. Com ele aprendi o lado mais realista e pragmático da religião católica em inúmeras conversas que íamos tendo no caminho da escola.
Ora, de todas as lições, a que mais me deixou ataratado, foi a revelação de que um católico não podia ser comunista.. A igreja tinha declarado uma expressa incompatibilidade entre a sua filosofia religiosa e aquela filosofia política. O comunismo estava off-limits. O meu mundo ruiu. Afinal, aquelas boas pessoas que defendiam os pobres e os oprimidos pela via política não podiam ser, simultaneamente, as mesmas que os defendiam pela via religiosa? Os partidos políticos que mais próximos estavam da Igreja Católica eram aqueles que defendiam um sistema económico em que o lucro impera, dono e senhor incontestado, qual bezerro de ouro dos tempos modernos?
Anos mais tarde, investigando melhor, descobri que o primeiro salvo desssa guerra politico-religiosa, teria sido dado pelo "pai da esquerda", quando proclamou que "A religião é o ópio do povo". Já pensei, mais moderadamente, "chegaste-te demasiado à frente, levaste no toutiço, que com a minha igreja ninguém se mete".
Acompanhei a forma como o Bloco de Leste perseguiu todos os crentes das várias religões, a desumanização da pessoa em nome de um materialismo dialéctico que nunca ninguém entendeu muito bem para o que servia. Vi os serviços secretos bulgaros levarem a cabo uma tentativa de assassinato contra Karol Wojtila. Vi que, de facto, aquela esquerda, a que se vivia do outro lado da Cortina de Ferro, não só não era amiga da religião como não era amiga do homem. Não tinha nada a ver com a imagem da esquerda da minha infância, com gaivotas que voavam e com meninos que não haveriam de combater. Esta esquerda combatia, do Camboja ao Afeganistão, estava muito longe de se igualitária (conta-se que a mãe de Breznhev lhe perguntou, preocupada, quando este lhe mostrava o luxo sumptuoso do Kremlin: "mas, Leónidas, e se os Bolcheviques regressam?) e parecia pregar mais o ódio do que o amor.
No entanto, nunca deixei de pensar que o que estava errado não eram os meus valores de esquerda. Quem estava errado era quem tinha feito aquela caricatura grotesca de um regime de esquerda que foram os países do bloco soviético). Marx, descobri ainda mais tarde, criticou soberbamente o capitalismo, mas nunca explicou o que se havia de pôr no seu lugar. Deixou vagamente escrito que o comunismo apareceria numa fase derradeira do capitalismo mas, em vez disso, só grassou em sociedades pré-industriais (Rússia e bloco de leste) ou sociedades agro-feudais (China e sudoeste asiático). As experiências comunistas, com muito raras excepções, foram todas tocadas de ouvido por caciques locais mais interessados em defender o poder e a riqueza pessoais do que em fazer progredir a humanidade.
No final dos anos 80, "comunismo" tinha-se tornado uma palavra maldita. Descanse em paz, que já nem a esquerda gosta muito de lhe pegar (o Bloco é de Esquerda, o PCP está escondido na CDU).
Mas será justo julgar os méritos da esquerda com base nas implementações de uns ditadorzecos sacanas e incompetentes? Afinal, não julgamos os méritos da direita pela implementação dada por um Somoza, um Galtieri. um Adolf Hitler. Porque é que temos de avaliar a esquerda e os seus valores ao sabor das borradas de Estaline, Mao-Tse-Dong, Pol Pot?
E quanto à incompatibilidade entre esquerda e religião? Terão de ficar eternamente de costas voltadas só por causa de um comentário de um barbudo do Século XIX que, se calhar, no contexto que ele conhecia, até tinha alguma razão? Até os comentários de Bento XVI sobre o profeta puderam ser sarados, porque não a questão do ópio? A esquerda e a religião não podem abraçar um conjunto comum de valores de partilha e solidariedade? Não podem unir esforços contra um neoliberalismo que tudo pode, onde tudo é relativo e onde os valores são uma coisa do passado?
Penso que até João Paulo II viu isso e, após a queda do Muro de Berlim, virou a sua artilharia contra o modelo de sociedade da direita neoliberal que desumaniza, adultera e adora falsos deuses. O Thatcherismo e o Reaganismo deixaram-nos uma sociedade de esquerda envergonhada em que os partidos de esquerda quase têm de pedir desculpa pelas suas políticas de apoio à família e contra um mundo hiper-competitivo que não deixa espaço para o homem. Deixaram-nos ainda um modelo económico em que, enquanto a riqueza média da população sobe, a pobreza da população mais fraca aumenta (sendo compensada por um enriquecimento exponencial da mais rica). É a velha história em que o João comeu um frango, o Zé passou fome mas, em média, comeram todos meio frango. As famílias são destroçadas por pais que são pressionados para trabalhar mais e mais horas, fora do horário de expediente. A globalização, vendida como panacéia social, deixa passar as mercadorias (de Norte para Sul), mas não deixa passar as pessoas (de Sul para Norte), permitindo aos países pobres competirem com a única riqueza que têm e que é uma mão de obra jovem. Os bens materiais são postos à frente das pessoas. O destino da sociedade é decidido nos Conselhos de Administração de algumas grandes empresas, longe do escrutínio democrático. A igreja que o estado comunista não conseguiu vencer é lenta mas inexoravelmente vencida pela televisão, pelos centros comerciais, pela cultura do gasta e deita fora.
Por isso, meus caros colegas incontinentes, vou aproveitar a minha nova e prezada presença entre firmes adeptos da direita com sólidas convicções religiosas, para lhes perguntar com toda a franqueza: porque é que Jesus Cristo não podia ser comunista e porque é que o ideário da esquerda é imcompatível com a crença religiosa mas o da direita não é...
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